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terça-feira, 31 de março de 2020

RECORDAÇÕES DE INFANCIA

Sobraram poucos vestigios de realidade.  O mundo se deixou dominar pelas sombras, e só a escrita se fêz tomar conta no papel.
Eu era criança, e não conhecia sonhos.  Queria a fatalidade do encontro por eles percorridos, e me deixar levar na descoberta de dias que seriam meus.  Deveriam sê-los tão somente, a mim.
Águas se passaram, me morri aos poucos, mas também conheci felicidades.  Existe um sopro de misterio em cada pergunta que não cala, e imagens de santos, sempre fadadas à piedade.  Aventurei-me.
Quantos mares navegados só, Helena.  Sem sua bússola ou âncora, mas me vem à memoria nossos alegres retornos da escola, desfilando pela rua encompridrada.  Sou fiel aos bons momentos, filha de criação.
Helena, vivi por voce a ousadia dos esconderijos das ruelas e ruas, por onde seus sapatos de cetim não passariam.  Fui à quitanda, e experimentei o gosto das frutas;  ao acougue, e cortei a carne dos bichos, com minhas mãos, ávidas.
Helena, minha mãe, acumulei mais devoção quando ouvi o relato daquela criança vizinha, que houvera contraido poliomielite, e ficado paraplégica para sempre.
E, fruto de uma traquinagem, ou não, me lancei, heroicamente, de um pequeno parapeito, tendo, como consequencia, alguns pontos costurados no queixo.
Helena, na verdade, o que fiz foi por mérito proprio. Sem sua cumplicidade, dedicação ou amor.   Sao meus feitos.
Fico pensando que, hoje, uma criança conheca o predio ou casa aonde more, e o playground vizinho.  Eu conheci uma area imensa, um campo de baseball, aquela casa instigante, a sede do Corinthias e seu baile de Carnaval, os dois irmãos lindos que eram meus vizinhos, a padaria, e o bar em frente.
Momentos doces, resgatados da memoria, parte de estoria.   Helena, conto-lhe agora.

quarta-feira, 18 de março de 2020

LÁGRIMAS DOCES COM GOSTO DE VÍRUS

Encontro-me à frente de um teclado mas, mais do que nunca, as letras se fazem meu desafio.
Elas são meu compromisso com a vida, e dela entendo tão pouco.
O Sol dos infortunios nos bate à porta, e como numa entonação soprada em mágica, o murmurio dos lamentos se torna uníssono.  É o canto dos homens, surgido na sua mais completa fragilidade.
E a vida, construida, à minha volta, segue seu rumo.  A árvore, minha amiga e companheira de solidões, me acena um novo dia, robusta, acenando seus galhos.   Ela é a natureza que não cala, enquanto nós somos muito mais faliveis.
Minhas flores, plantadas. me retribuem a doçura das cores e do silencio que preciso para sobreviver, num momento de contemplação sem anseios, e só ternura.
Minha tristeza percorre os labirintos de perguntas, movida pelas inquietações e dúvidas.  A dor leva à ira, como também ao amorteciimento dos sentidos.
Lá fora, a vida continua.  Os sons diminuirão, ao que se saiba. Viveremos dias difíceis, que trarão uma mensagem inconteste.  Será ela ouvida pelo humano ser ?
Tudo acontece rápido.  Atestando nossa fragilidade, exponenciando nossa arrogancia e falta de saber.  Destruindo ilusôes de quem, meramente, as pensou sonhar tê-las, por um dia.
Choro lágrimas diferentes.  São cor de rosa.  Doces.  De verão e inverno.  Que sempre existiram, e valeram a pena.  De ser humano, tão pequeno, um mundo inteiro.

segunda-feira, 9 de março de 2020

A OUSADIA DA GENITÁLIA EXPOSTA

Começando por datas, o Grupo Ornitorrinco foi formado ao fim dos anos 70.
Escolheram bem o nome.  Aquele animal que coloca ovos, mas amamenta, e que tem bico de pato.  De normal, ele só tem tudo de esquisito.
Lá fomos nos vermos um espetáculo do grupo.  Que seria mais um, e nem ficaria na minha memoria.  Mas, lá pelas tantas, uma das personagens retira a parte inferior da vestimenta, e fica com a genitália exposta, pelo resto da peça teatral.  Lembro-me como se fosse agora.  Por muito tempo, aquela mulher despojada, praticamente nua, encenando, com a maior naturalidade.
Passam-se os anos, e à minha surpresa, foram se somando diversos afetos.  Gratidão, admiração e, porque não, até inveja.
Lembro-me de que fomos jantar, todos juntos, o pessoal da peça, e nós, os que fomos assistí-la.  Ela cortejou um dos meus amigos, que se retraiu, apavorado.  O que para ela era natural, era, para ele, no mínimo, bastante estranho.  Eram os homens do fim da década de 70.  Será que mudaram ?
Nem sei qual era o nome dela, nem procurei sabê-lo.  Ela ficou, para mim, como um símbolo.  Do despudor, coragem, negação do convencional.  Aquela atriz que levou o script até o fim, saboreando cada momento.
Porque, afinal de contas, de perto, como diz Caetano, ninguém é normal.  E a beleza da mulher está no seu todo, comemorado o que o seja, em todos os dias do ano.